sábado, 9 de maio de 2015

A Lição de Casa e suas relações com a Meritocracia: Já Pensou Sobre Isso?


Estou aqui buscando ampliar meu entendimento sobre o mundo ao meu redor e, portanto, muito atenta àquilo que abala minhas certezas. Tentarei provocar reflexões e discussões sem querer necessariamente chegar a uma conclusão final ou a uma resposta única. Ainda assim, sei que corro um grande risco de ser mal compreendida. Espero conseguir evitar isso.

O assunto do dia é a relação entre escola e família no que se refere, principalmente, à lição de casa. Primeiramente, assumo que, como professora, acredito na lição de casa e na participação da família naquilo que diz respeito à formação e educação dos filhos. Penso também que o momento de estudo/prática individualizada e sem a presença do professor (ou familiar) é fundamental para o aprendizado, amadurecimento, criação da autonomia e até para o fortalecimento da autoestima do aluno. O erro faz parte da aprendizagem e sua identificação permitirá aos educadores orientarem o aluno naquilo que ele apresenta dificuldades.

Além disso, defendo também a lição de casa pois, como professora, sei que o tempo em sala muitas vezes é incompatível com a carga de conteúdos que temos que transmitir aos alunos. Isso faz com que, tantas vezes, a necessidade de explicações mais detalhadas e bem feitas comprometam o tempo destinado aos exercícios, à prática em si (do aluno). Assim, o estudo realizado em casa é complementar e indispensável para o trabalho iniciado na escola.

Portanto, é plausível que a parceria de escolas e famílias possa ser muito benéfica para os alunos, principalmente para os mais novos, que carecem de mais orientações, atenção e cuidado. Mas há ressalvas e até mesmo controvérsias quanto a isso, o que confere relevância à discussão.
Existe um material disponível bastante interessante e simplificado - iniciativa da Editora Abril e da Malwee -  que pode contribuir para as reflexões relativas à promoção do caminhar conjunto. Observem a cartilha: 


Clique na imagem para ampliar



O conteúdo exposto parece estar de perfeito acordo com o que a grande maioria de nós acredita ser o correto, concordam? Respondendo por mim, digo que sempre pensei ser esse o melhor caminho para uma educação bem sucedida com apoio familiar e nunca havia me questionado quanto a isso. Talvez eu e todos os demais estejamos corretos. Ainda não mudei totalmente minha opinião, apenas atentei-me a fatos que não havia notado antes e pus-me a pensar a respeito. Então, se eu estiver certa ao pensar que a grande maioria de nós concorda com o exposto na cartilha, fica evidente que parece haver uma tendência na cultura capitalista corporativista em aceitar tais ideias sem grandes questionamentos. 

Entretanto, apesar de, à primeira vista, a elaboração da cartilha parecer benéfica tanto para a relação entre pais e filhos quanto para as relações entre pais e escola, alunos e escola e entre alunos e seus objetos de conhecimento (conteúdos impostos pela escola), é possível olharmos através de lentes críticas, percebendo que tal trabalho, na verdade, pode carregar intenções políticas ocultas em seu pano de fundo.

Focando sua atenção na questão da lição de casa, da promoção da importância da participação familiar nos deveres escolares, Carvalho (2004) provoca alguns questionamentos pertinentes neste sentido. Por exemplo: se o trabalho desenvolvido na escola for realmente bem sucedido, existiria de fato a necessidade das frequentes e padronizadas atividades complementares em casa?

Retornando ao que eu disse acima, sei que nós professores sofremos essa incoerência entre conteúdos a serem ensinados e tempo de trabalho em sala de aula, tornando nossa tarefa bastante árdua. Nesse contexto, as lições de casa apresentam um papel crucial, mas a pergunta vai mais além. Podemos pensar criticamente justamente sobre esse sistema de ensino que sobrecarrega professores e alunos e que impossibilita a realização de um trabalho, de fato, bem sucedido.
Ademais, os pais têm um papel educacional e é sabido que vários aspectos da vida familiar podem influenciar, ajudando ou prejudicando, o desempenho escolar dos alunos (ex: desnutrição, relacionamento familiar afetivamente positivo/negativo, etc). Mas por que não deixar a cargo das escolas a educação escolar? Isso não significa que os pais não possam participar, ajudar ou opinar no processo. Isso significa apenas que o desempenho escolar das crianças, no que diz respeito à aquisição de conhecimentos acadêmicos (e não relacionado a outros aspectos como, por exemplo, os comportamentais), seria responsabilidade primária da escola. Casos especiais, no entanto, poderiam e deveriam ser tratados diferenciadamente.
Enquanto alguns autores defendem a importância do momento da lição de casa orientada pelos pais como forma deles conhecerem o desenvolvimento dos filhos e a missão acadêmica da escola, Carvalho (2004) defende que a obrigatoriedade das lições de casa e  o fato de elas serem avaliadas e consideradas nas notas finais dos alunos criam uma condição adversa para as famílias e consequentemente para os alunos. Para a autora, essa conexão escola-família e a divisão de responsabilidades (sempre focando no que diz respeito às lições de casa) é controversa, potencialmente conflitiva e desconsidera importantes questões relacionadas à equidade e pluralidade cultural. Segundo a mesma,

Como nó da parceria família–escola, o dever de casa, portanto, é fundamentalmente uma questão política. Se fosse valorizado ou tivesse condições de ser implementado igualmente por todas as famílias, não necessitaria de regulação formal. Por isso, a política de intensificação do dever de casa pode ser interpretada como um caso de educação da família (de determinadas famílias) e de política cultural, ao submeter os valores educacionais da família à meta de eficácia escolar e aos conceitos prevalentes de sucesso individual. (2004)

Deve-se levar em conta que famílias com diferentes estruturas, composições, níveis econômicos e sociais dispõem de condições muito distintas quanto a tempo, disposição, instrução, entre outros aspectos que influenciam a qualidade e o significado do momento da lição de casa.

A cartilha apresentada por uma das, se não a, mais influentes editoras do Brasil não somente propõe a parceria e divisão da responsabilidade do ensino entre escola e família, mas prioriza a responsabilidade familiar no processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos acadêmicos, visto seu título "Educação Começa em Casa".
Então, após essa breve atuação como "advogada do diabo", deixo aqui uma pergunta genuína: estaria essa transmissão de responsabilidade sobre a aprendizagem (da escola para a família) de acordo com uma cultura que tenta impor aos seus integrantes que seu fracasso ou sucesso advém principalmente de seu próprio mérito (meritocracia) e não das condições e oportunidades às quais se tem acesso? 


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Obs: Recomendo a leitura do artigo citado (referência e link abaixo) e, para aqueles que leem em inglês, há um texto que também achei interessante (clique AQUI).
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Referências
CARVALHO, M. E. P. (2004). Escola como extensão da família ou família como extensão da escola? O dever de casa e as relações família-escola. Rev. Bras. Educ.,  Rio de Janeiro ,  n. 25. [Online]; acedido em 11.Fevereiro.2015, de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782004000100009&lng=en&nrm=iso>;. access on  12  Feb.  2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782004000100009.


Imagens:
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2 comentários:

  1. Excelente reflexão! Minha área de atuação é especificamente tecnológica mas também leciona disciplina específicas no Curso de Licenciatura em Computação da UNEMAT no Campus de Colider/MT. Também estou participando de Especialização em Docência no Ensino Superior e realizando uma pesquisa sobre Pedagogia Universitária e percebo como minha postura em sala de aula metodologicamente mudou. Seu texto enriquece muito minha prática docente e quero agradecer imensamente sua contribuição em nosso Blog e nos colocamos a disposição. Abraços!

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    1. Obrigada, Luiz! :)
      Volte sempre para deixar suas reflexões, comentários e compartilhar experiências!
      Abs

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